Capítulo 3 - Este Mundo Tenebroso

Continuação...

Capítulo. 3


A poucos quilômetros da cidade, na Rodovia 27, uma grande limusine preta deslizava rapidamente pela 
paisagem campestre. No luxuoso banco traseiro, um rechonchudo homem de meia-idade falava de negócios 
com a secretária, uma mulher alta e esguia de longos cabelos negros e tez pálida. Falando nítida e sucintamente enquanto ela tomava notas em fluida estenografia, ele planejava uma transação comercial de 
grande porte. Então algo aconteceu ao homem. 
— Isso me faz lembrar — disse ele, e a secretária ergueu os olhos do bloco de anotações. — A professora
alega ter-me mandado um pacote há algum tempo, mas não me recordo de tê-lo recebido. 
— Que tipo de pacote? 
— Um livrinho. Um item pessoal. Tente lembrar-se de procurá-lo quando estiver de volta à fazenda? 
A secretária abriu a pasta e deu a impressão de ter anotado alguma coisa. Na realidade, não escreveu 
nada. 

Era a segunda visita que Marshall fazia à Praça do Tribunal no mesmo dia. A primeira vez havia sido para 
tirar Berenice da cadeia, e agora fazia uma visita a exatamente ao mesmo homem que Berenice queria  enforcar: Alf Brummel, o Delegado. Depois que o Clarim finalmente foi para a tipografia, Marshall estava prestes a chamar Brummel, mas Sara, a secretária de Brummel, chamara Marshall primeiro e marcara um encontro entre os dois para as duas horas da tarde naquele mesmo dia. Havia sido uma boa jogada, pensou Marshall. Brummel estava pedindo tréguas antes que os tanques começassem a rolar. 
Estacionou no lugar que lhe era reservado na frente do novo edifício do tribunal e fez uma pausa ao lado do carro a fim de olhar para cima e para baixo na rua, avaliando o que restara da agonia da noite de domingo, a última do Festival. A rua principal procurava ser a mesma de sempre, mas aos olhos perspicazes de Marshall a cidade toda parecia estar mancando, meio cansada, dolorida, morosa. Os mesmos grupinhos de
pedestres geralmente meio apressados paravam, olhavam, meneavam a cabeça e lamentavam. Por gerações, Ashton se havia orgulhado do calor e dignidade do seu povo e se havia esforçado em ser um bom lugar onde seus filhos crescessem. Mas agora havia tumultos íntimos, ansiedades, receios, como se algum
tipo de câncer a estivesse corroendo e destruindo-a invisivelmente. Por fora havia as vitrinas, agora
substituídas por feios tapumes. Os medidores de estacionamento estavam quebrados, o lixo e cacos de
vidro se espalhavam por toda a rua. Mas mesmo enquanto os lojistas e os comerciantes varriam o entulho, parecia haver uma silenciosa certeza de que os problemas internos permaneceriam, as dificuldades continuariam. Os crimes estavam aumentando, especialmente entre os jovens; a confiança comum e simples
no próximo estava diminuindo; nunca a cidade estivera tão cheia de boatos, escândalos e fofocas maliciosas. À sombra do medo e da suspeita, a vida estava aos poucos perdendo a sua alegria e simplicidade, e ninguém parecia saber por que nem como. Marshall dirigiu-se à Praça do Tribunal. A praça consistia de dois prédios, agradavelmente guarnecidos de chorões e arbustos, de frente para um estacionamento comum aos dois. Em um lado estava o elegante prédio do Tribunal, dois andares de tijolo à vista, que também abrigava o Departamento de Polícia e um porão um tanto decadente com seu bloco de celas.
Um dos três carros policiais estava estacionado do lado de fora. No outro lado encontrava-se o prédio da
Prefeitura, de dois andares e frente de vidro, que abrigava o gabinete do Prefeito, a câmara dos vereadores, e outras autoridades. Marshall dirigiu-se ao Tribunal. Passando por uma entrada simples e modesta marcada “Polícia”, ele encontrou vazia a pequena área de recepção. Ele podia ouvir vozes vindas do corredor detrás de algumas das portas fechadas, mas Sara, a secretária, parecia ter deixado temporariamente a sala. Não — atrás do balcão recoberto de fórmica da recepcionista um enorme arquivo balançava lentamente para a frente e para trás, e grunhidos e gemidos vinham lá de baixo. Marshall inclinou-se sobre o balcão e deparou com uma cena cômica. Sara, de joelhos, não obstante a saia que usava, tramava furiosa luta com uma gaveta do arquivo que se enroscara na sua mesa. Aparentemente, a contagem era Gavetas do Arquivo 3 X
Canelas de Sara O, e Sara era má perdedora, assim como o era a sua meia-calça.
Em má hora ela soltou uma imprecação, e então percebeu que ele estava em pé ali, mas já era tarde demais para recobrar a costumeira pose.
— Oh, alô, Marshall...
— Da próxima vez use botas de combate. Elas são mais apropriadas para colocar as coisas no lugar a  pontapés. Pelos menos eles se conheciam, e Sara estava grata por isso. Marshall já havia aparecido neste lugar vezes suficientes para ficar conhecendo bem a maioria do pessoal que trabalhava aqui.
— Estes — disse ela no eloqüente tom de guia turística — são os infames arquivos do Sr. Alf Brummel, Delegado de Polícia. Ele acabou de conseguir uns belos arquivos novos, e eu herdei estes aqui! Por que preciso deles em meu escritório é algo que não consigo entender, mas tenho ordens expressas do chefe, e aqui eles têm de ficar!
— São feios demais para o escritório dele.
— Mas a cor cáqui... é ele, sabe? Ora, talvez uma pintura e uns decalques os deixem um pouco mais alegres. Se vão se mudar para cá, o mínimo que podem fazer é sorrir. Naquele instante, o telefone interno tocou. Ela apertou o botão e atendeu.
— Sim, senhor?
A voz ríspida de Brummel gritou da caixinha:
— Ei, o meu alarme de segurança está piscando...
— Desculpe, fui eu que o acionei. Estava tentando fechar uma das gavetas do seu arquivo.
— Está bem, certo. Olhe, veja se dá um novo arranjo às coisas, sim?
— Marshall Hogan está aqui e deseja vê-lo.
— Oh, muito bem. Mande-o entrar.
Ela olhou para Marshall e apenas meneou a cabeça pateticamente.
— Você não está precisando de uma secretária? — murmurou. Marshall sorriu. Ela explicou:
— Ele botou esse arquivo junto do botão de alarme silencioso. Toda vez que abro uma gaveta, cercam o prédio inteiro. Com um aceno de despedida, Marshall dirigiu-se à porta do primeiro escritório e entrou no gabinete de Brummel. Alf Brummel se pôs em pé e estendeu a mão, o rosto explodindo em um largo sorriso que punha à mostra os dentes brancos como marfim.
— Ei, aí está o homem!
— Olá, Alf.
Apertaram-se as mãos enquanto Brummel fazia Marshall entrar e fechava a porta. O Delegado era um homem dos seus trinta e poucos anos, solteiro, ex-tira de cidade grande levando um tipo de vida extravagante que desmentia o seu salário de policial. Ele sempre dava a impressão de ser um cara amigo, mas Marshall nunca havia conseguido confiar realmente nele. Pensando bem, nem mesmo gostava muito do homem. Muito dente à mostra por qualquer coisa.
— Bem — sorriu Brummel — sente-se, sente-se.
E mesmo antes de se afundarem nas poltronas, ele estava falando novamente.
— Parece que cometemos um engano cômico este fim-de-semana. Marshall lembrou-se da cena de sua repórter na cela das prostitutas.
— Berenice não riu a noite toda, e acabei ficando vinte e cinco dólares mais pobre.
— Bem — disse Brummel, abrindo a gaveta superior da escrivaninha — é por isso que estamos fazendo esta reunião, para esclarecer o embrulhada toda. Tome. Ele apanhou um cheque e o estendeu a Marshall.
— É a restituição do dinheiro que você pagou pela fiança, e quero que saiba que Berenice vai receber uma retratação oficial assinada por mim e por este gabinete. Mas, Marshall, por favor, diga-me o que aconteceu. Se ao menos eu estivesse por lá, teria podido evitar a coisa.
— Berenice diz que você estava lá.
— Eu? Onde? Sei que entrei na delegacia e saí dela a noite toda, mas...
— Não, ela viu você no Festival. Brummel forçou um sorriso mais amplo.
— Bem, não sei quem ela viu na realidade, mas eu não fui ao Festival ontem à noite. Estive ocupado por
aqui. Marshall estava agora embalado demais para voltar atrás.
— Ela viu você bem na hora em que estava sendo presa. Brummel pareceu não ouvir essa última declaração.
— Mas continue, conte-me o que aconteceu. Preciso chegar à raiz dessa confusão.
Marshall sustou bruscamente o ataque. Não sabia por quê. Talvez fosse por cortesia. Talvez por intimidação. Qualquer que fosse o motivo, ele começou a desfiar a história direitinho, quase como um noticiário,exatamente da maneira que Berenice lhe havia contado,mas cautelosamente deixou de fora os detalhes incriminadores acrescentados por ela. Enquanto falava, seus olhos estudavam Brummel, o escritório, e todo e qualquer detalhe específico da decoração, a organização das peças do mobiliário, a agenda. Era quase um reflexo. Com o passar dos anos, ele tinha adquirido a habilidade de observar e acumular informação sem dar a impressão de estar agindo assim. Talvez fosse por não confiar no homem, mas mesmo que confiasse, uma vez repórter, sempre repórter. Dava para ver que o escritório de Brummel pertencia a pessoa exigente, desde a escrivaninha muito polida, muito em ordem até os lápis, perfeitamente apontados. Ao longo da parede, onde os feios arquivos costumavam estar, via-se um lindo conjunto de estantes e armários de carvalho, com portas de vidro e ferragens de bronze.
— Puxa, você está melhorando de vida, hein, Alf? — gracejou Marshall, olhando na direção das estantes.
— Gosta delas?
— Muito. O que são?
— Um belo substituto daqueles velhos arquivos. Servem para mostrar o que a gente consegue, se economizar os tostões. Eu detestava ter aqueles arquivos aqui dentro. Acho que um escritório deve ter um pouco de classe, certo?
— Sim, é isso mesmo, claro. Nossa, você tem a sua própria copiadora. ..
— Sim, e estantes, mais lugar para guardar as coisas.
— E outro telefone?
— Telefone?
— O que é aquele fio saindo da parede?
— Oh, aquilo é para a cafeteira elétrica. Mas de que mesmo estávamos falando?
— Sim, sim, o que aconteceu a Berenice... — e Marshall continuou a narrativa. Ele tinha bastante prática em ler de cabeça para baixo, e enquanto continuava a falar, correu os olhos pela agenda na escrivaninha de Brummel. As tardes das terças-feiras se destacavam por estarem sempre em branco, embora não fosse esse o dia de folga do Delegado. Uma terça-feira, contudo, tinha uma hora marcada: o Rev. Oliver Young,
às 2 da tarde. — Oh — disse com naturalidade — vai fazer uma visita ao meu pastor amanhã?
Percebeu imediatamente que havia ultrapassado os limites; Brummel demonstrou surpresa e irritação ao mesmo tempo. O Delegado mostrou os dentes num sorriso forçado, e disse:
— Oh, sim, Oliver Young é o seu pastor, não é?
— Vocês se conhecem?
— Não muito bem. Já nos encontramos algumas vezes, profissionalmente, acho eu...
— Mas você não freqüenta a outra igreja, aquela pequenina?
— Sim, a da Comunidade de Ashton. Mas, continue, vamos ouvir o resto do que aconteceu.
Marshall estava impressionado com a facilidade com que esse sujeito se perturbava, mas tentou não contestá-lo mais. Pelo menos, não por enquanto. Em vez disso, ele continuou a narrativa do ponto onde havia interrompido e arrematou-a com capricho, incluindo a ira da moça. Percebeu que Brummel havia descoberto alguns importantes papéis que precisava examinar, papéis que cobriram o calendário sobre a escrivaninha. Marshall perguntou:
— Diga, quem foi esse tira cheio de si que não deixou Berenice se identificar?
— Um cara de fora, nem mesmo era do nosso pelotão local. Se Berenice nos puder dar o nome ou o número da insígnia, farei com que ele seja repreendido pelo seu comportamento. Veja, tivemos de trazer alguns auxiliares de Windsor a fim de reforçar as coisas durante o Festival. Quanto ao pessoal daqui, nossos
homens sabem muito bem quem é Berenice Krueger. Brummel proferiu a última sentença com um toque de ferocidade.
— Então, por que não é ela quem está sentada aqui ouvindo todas essas desculpas em vez de mim?
Brummel inclinou-se para a frente com um ar bem sério.
— Achei que seria melhor falar com você, Marshall, em vez de fazê-la desfilar por este escritório, já um tanto estigmatizada. Suponho que você saiba por quantas aquela garota tem passado. Está bem, pensou Marshall, perguntarei.
— Estou há pouco tempo na cidade, Alf.
— Ela não lhe contou?
— E você adoraria fazê-lo?
Saiu sem querer, e doeu. Brummel afundou-se de volta na cadeira e estudou o rosto de Marshall.
Nesse exato momento, Marshall estava pensando que não se arrependia do que tinha dito.
— Estou aborrecido, caso você não tenha percebido. Brummel iniciou um novo parágrafo.
— Marshall... eu quis vê-lo hoje pessoalmente porque queria... consertar esse negócio.
— Então, vamos ouvir o que você tem a dizer sobre Berenice. Brummel, é melhor você escolher com
cuidado as palavras, pensou Marshall.
— Bem... — gaguejou Brummel, subitamente colocado em cheque. — Achei que você poderia querer saber o que aconteceu caso você viesse a achar a informação útil ao lidar com ela. Sabe, foi diversos
meses antes de você assumir o jornal que ela veio a Ashton. Apenas poucas semanas antes da sua chegada,
a irmã dela, que fazia faculdade, suicidou-se. Berenice veio a Ashton cheia de fúria vingativa, tentando solucionar o mistério em torno da morte da irmã, mas...todos nós sabíamos que era apenas uma dessas coisas que acontecem, para as quais nunca haverá explicação. Marshall nada disse por espaço significativo de tempo.
— Eu não sabia disso. A voz de Brummel era baixa e pesarosa, ao dizer:
— Ela tinha certeza de que havia algum tipo de sujeira envolvida. Foi uma investigação bem agressiva a que ela conduziu.
— Bem, ela tem mesmo o faro de repórter.
— Ter, isso ela tem. Mas veja, Marshall... a prisão, foi um engano, um engano humilhante, para falar a verdade. Realmente não achei que ela desejasse ver o interior deste prédio tão cedo. Compreende agora?
Mas Marshall não estava certo de compreender. Nem mesmo estava certo de ter ouvido tudo o que fora dito. De repente, ele se sentiu muito fraco, e não conseguia descobrir aonde sua raiva fora parar tão depressa. E que dizer das suas suspeitas? Ele sabia que não acreditava em tudo que aquele sujeito estava dizendo... ou acreditava? Sabia que Brummel havia mentido a respeito de não estar no Festival... mas havia
mesmo? Ou será que não ouvi direito o que ele disse? Ou... onde é mesmo que estávamos? Vamos lá, Hogan, você não dormiu direito a noite passada?
— Marshall?
Marshall olhou bem nos olhos cinzentos e atentos de Brummel, e sentiu-se meio amortecido, como se estivesse sonhando.
— Marshall — disse Brummel — espero que compreenda. Agora você compreende, não é?
Marshall precisou obrigar-se a pensar, e percebeu que era mais fácil se não olhasse diretamente nos olhos de Brummel por um momento.
— Uhm... — Era um começo idiota, mas era o máximo que conseguiu pôr para fora. — É, sim, Alf, acho que percebo o que quer dizer. Suponho que agiu corretamente.
— Mas realmente quero acertar todo esse negócio, especialmente entre nós dois.
— Ora, não se preocupe. Não é assim tão importante.
Mesmo enquanto estava dizendo isso, Marshall se perguntava se realmente havia dito essas palavras. Os grandes dentes de Brummel tornaram a surgir.
— Fico muito contente em ouvir isso, Marshall.
— Mas, olhe, você poderia pelo menos ligar para ela. Ela foi atingida de uma forma bem pessoal, não acha?
— É o que farei, Marshall.
Depois disso, Brummel inclinou-se para a frente com um sorriso estranho no rosto, as mãos fortemente  entrelaçadas sobre a escrivaninha e os olhos cinzentos prendendo Marshall naquele mesmo olhar entorpecente,penetrante, estranhamente calmante.
— Marshall, falemos agora de você e do resto desta cidade. Sabe, estamos realmente contentes em tê-
lo aqui para assumir o Clarim. Sabíamos que seu estilo refrescante de jornalismo seria bom para a comunidade.Vou ser franco em dizer que o último redator foi... um tanto prejudicial ao ânimo da cidade, principalmente no fim. Marshall sentiu-se levado na onda dessa conversa, mas podia perceber que aí vinha algo. Brummel continuou:
— Precisamos do seu tipo de classe, Marshall. Você dispõe de grande poder que pode exercer através da imprensa, e todos sabemos disso, mas é necessário o homem certo para manter esse poder direcionado no
rumo certo, para o bem comum. Todos nós nos cargos públicos estamos aqui para servir aos melhores interesses da comunidade, da raça humana se pensarmos bem no assunto. Mas você também, Marshall. Você está aqui para o bem do povo, da mesma forma que o restante de nós.
Brummel passou os dedos pelo cabelos, um gesto nervoso, e então perguntou:
— Bem, entende o que estou dizendo?
— Não.
— Bem... — Brummel tentou encontrar um novo ponto de partida. — Acho que é como você disse, faz
pouco tempo que chegou aqui. Será que é melhor eu ir diretamente ao assunto?
Marshall deu de ombros como a dizer “por que não?” e deixou Brummel continuar.
— Esta é uma cidade pequena, antes de tudo, o que significa que um problemazinho qualquer, mesmo entre um punhado de pessoas, vai atingir e preocupar quase todas as outras pessoas. E a gente não pode-se esconder por trás do anonimato simplesmente por que ele não existe. Ora, o antigo redator não entendia isso e realmente causou alguns problemas que prejudicaram toda a população. Ele era um demagogo patológico. Destruiu a fé que as pessoas tinham no governo local, nos funcionários públicos, umas nas outras, e, por fim, nele próprio. Foi algo que doeu. Foi uma ferida no nosso lado, e está demorando para todos nós nos recuperarmos. Completando, deixe-me dizer-lhe que, para sua informação, aquele homem finalmente teve de sair da cidade coberto de vergonha. Ele molestou uma menina de doze anos. Tentei evitar a repercussão do caso tanto quanto possível. Mas nesta cidade foi realmente desajeitado, difícil. Fiz o que achei que causaria a menor aflição e dor à família e às pessoas em geral. Não levei a queixa judicial contra esse homem adiante, contanto que ele deixasse Ashton e nunca mais pusesse os pés aqui. Ele concordou com essa condição. Mas jamais me esquecerei do choque que causou, e duvido que a cidade tenha esquecido. — E isso nos traz de volta a você, e nós, os servidores do público, e também aos membros desta comunidade. Uma das maiores razões pelas quais essa confusão com Berenice me deixa chateado é por realmente desejar um bom relacionamento entre este gabinete e o Clarim, entre mim e você, pessoalmente. Detestaria ver qualquer coisa estragar as coisas. Precisamos de união por aqui, camaradagem, um bom espírito de comunidade. Ele fez uma pausa de efeito.
— Marshall, gostaríamos de saber que você está do nosso lado e trabalhando em prol desse objetivo.
Então veio a pausa e o olhar longo e cheio de expectativa. Era a vez de Marshall. Ele se remexeu um pouco na cadeira, organizando os pensamentos, sondando os sentimentos, quase evitando aqueles fixos olhos cinzentos. Talvez esse sujeito estivesse usando de franqueza, ou talvez esse pequeno discurso não passasse de uma astuta manobra diplomática visando a afastá-lo de alguma coisa que Berenice, inadvertidamente, houvesse descoberto. Mas Marshall não conseguia pensar com coerência, nem mesmo sentir com coerência. Sua repórter tinha sido presa falsamente e jogada numa porcaria de cadeia para passar a noite, e ele já nem parecia se importar; esse Delegado de sorriso dentuço a estava fazendo passar por mentirosa, e Marshall estava consentindo. Vamos, Hogan, lembra-se do motivo que o trouxe aqui?
Mas ele se sentia tão cansado! Ficava a relembrar o motivo de ter-se mudado para Ashton. Deveria ter sido uma mudança no estilo de vida dele e da família, um tempo para deixar de brigar e arranhar as intrigas da cidade grande e simplesmente procurar as histórias mais simples, coisas como campanha de ajuntar jornal
da turma da escola e gatos que subiam nas árvores e não conseguiam descer. Talvez fosse apenas a força do hábito depois de todos os anos passados no Times que o levasse a pensar que tinha de submeter Brummel a um interrogatório. A troco de quê? Mais briga? Puxa vida, que tal um pouco de tranqüilidade e silêncio para variar? De súbito, e contrário aos seus melhores instintos, ele soube que não havia nada com que se preocupar; o filme de Berenice estaria em ordem, e as fotos provariam que Brummel estava certo e ela errada. E Marshall realmente desejava que fosse assim. Mas Brummel ainda estava esperando uma
resposta, ainda o estava mirando com aquele olhar entorpecedor.
— Eu... — começou Marshall, e nessa hora sentiu-se tolo e desajeitado. — Olhe, estou realmente cansado
de brigar, Alf. Talvez eu tenha sido criado assim, talvez tenha sido isso o que me fez sair bem no meu trabalho com o Times, mas resolvi mudar-me para cá, e isso tem de significar alguma coisa. Estou cansado, Alf, e não estou ficando mais jovem. Preciso de cura. Preciso aprender como realmente é ser humano e viver em uma cidade com outros seres humanos.
— Sim — disse Brummel — é isso aí. É exatamente isso. — Então... não se preocupe. Como todos, vim aqui procurar paz e tranqüilidade. Não quero brigas, não quero encrencas. Nada tem a temer de minha parte. Brummel ficou radiante e esticou a mão para selarem o acordo. Ao apertar a mão dele, Marshall sentiu-se quase como se tivesse vendido parte da alma.
Será que Marshall Hogan realmente havia dito tudo aquilo? Eu devo estar cansado, pensou. Sem o perceber, ele se encontrava em pé do lado de fora da porta de Brummel. Aparentemente, seu encontro havia terminado. Depois que Marshall saiu e a porta foi bem fechada, Alf Brummel afundou-se em sua cadeira com um suspiro de alívio, e deixou-se apenas ficar sentado por algum tempo, fitando o espaço, recuperando-se, criando coragem para enfrentar a próxima penosa tarefa. Marshall Hogan era apenas o aquecimento, no que lhe dizia respeito. O verdadeiro teste estava por começar. Estendeu a mão ao telefone, puxou-o um pouco mais para perto, ficou a fitá-lo por uns instantes, e então discou um número. Hank dava os últimos retoques na pintura que fazia na frente da casa quando o telefone tocou e Mary chamou, dizendo que era Alf Brummel. Puxa, pensou Hank. E aqui estou eu, com um pincel encharcado na mão. Gostaria que ele estivesse aqui. Ele confessou seu pecado ao Senhor enquanto se dirigia ao telefone.
— Olá — disse. Em seu escritório, embora estivesse a sós, Brummel deu as costas à porta para tornar mais
particular a conversa, e abaixou a voz ao falar.
— Oi, Hank. Aqui é o Alf. Achei que devia ligar para você esta manhã e ver como está... depois de ontem
à noite.
— Oh... — disse Hank, sentindo-se como um ratinho na boca do gato. — Acho que estou bem. Melhor,
talvez.
— Então você pensou no assunto?
— Sim, claro. Pensei muito. Orei a respeito, verifiquei novamente a Palavra com relação a certas questões...
— Hummm. Parece que você não mudou de idéia.
— Bem, se a Palavra de Deus mudasse, então eu mudaria, mas acho que o Senhor não retira aquilo que
disse, e você sabe em que posição isso me coloca.
— Hank, você sabe que a assembléia extraordinária será realizada sexta-feira.
— Sei.
— Hank, realmente gostaria de ajudá-lo. Não quero vê-lo destruir-se. Acho que você tem sido bom para a igreja, mas... o que posso dizer? A divisão, a murmuração... estão a ponto de acabar com a igreja.
— Quem está murmurando?
— Ora, vamos...
— E por falar nisso, quem convocou a assembléia em primeiro lugar? Você. Sam. Gordon. Não tenho dúvida de que Lou ainda esteja por trás disso tudo, bem como de quem quer que tenha pichado a frente da
minha casa.
— Estamos todos preocupados, apenas isso. Você, bem, você está lutando contra o que é melhor para a
igreja.
— Que engraçado! Achei que estava lutando contra você. Mas ouviu o que eu disse? Alguém pichou a frente da minha casa.
— O quê? Pintou o quê? Hank despejou tudo em cima dele. Brummel deixou escapar um gemido.
— Ah, Hank, isso é doentio!
— E Mary está-se sentindo mal, e eu também. Ponha-se em nosso lugar.
— Hank, se eu estivesse em seu lugar, reconsideraria. Não vê o que está acontecendo? Os rumores estão se espalhando e a cidade toda está-se colocando contra você. Isso também significa que, não demora muito, e a cidade toda se porá contra a nossa igreja, e temos de sobreviver nesta cidade, Hank! Estamos aqui para ajudar as pessoas, estender as mãos para elas, não para colocar um percalço entre nós e a comunidade. — Eu prego o evangelho de Jesus Cristo, e há um bom número de pessoas que apreciam esse fato. Onde, exatamente, está esse percalço de que você está falando?
Brummel estava ficando impaciente.
— Hank, aprenda a lição com o último pastor. Ele cometeu o mesmo erro. Veja o que lhe aconteceu.
— Foi o que fiz, aprendi com ele. Aprendi que tudo o que preciso fazer é desistir, guardar tudo, esconder a
verdade em alguma gaveta para que ela não ofenda a ninguém. Então estarei bem, todo mundo gostará de
mim, e seremos uma família feliz novamente. Aparentemente, Jesus estava enganado. Ele podia ter conservado uma porção de amigos se se tivesse omitido e feito o jogo político.
— Mas você quer ser crucificado!
— Eu quero salvar almas, quero convencer pecadores, quero ajudar aos crentes recém-convertidos a crescer na fé. Se eu não fizer isso, terei muito mais a recear do que você e o resto do conselho.
— Eu não chamo isso de amor, Hank.
— Eu amo a todos vocês, Alf. É por isso que lhes dou o remédio de que precisam, e especialmente no que
diz respeito ao Lou. Brummel sacou uma arma poderosa.
— Hank, você já parou para pensar que ele pode processá-lo? Houve uma pausa no outro lado.
Finalmente, Hank respondeu:
— Não.
— Ele pode processá-lo por prejuízos, calúnia, difamação de caráter, angústia mental, e quem sabe lá o que mais? Hank respirou fundo e apelou ao Senhor, pedindo e sabedoria.
— Você está vendo qual é o problema? — disse finalmente. — É grande demais o número de pessoas que já não sabem, ou não querem saber, qual é a verdade. Não acreditamos em algo, de modo que caímos por qualquer coisa, e agora sujeitos como o Lou se metem numa confusão onde podem magoar a família, iniciar as próprias fofocas, arruinar as suas reputações, tornarem-se miseráveis em seu pecado... e depois
procurar alguém em quem jogar a culpa! Quem está fazendo o que a quem?
Brummel apenas suspirou.
— Falaremos a respeito de tudo isso sexta à noite. Você estará lá?
— Sim, estarei. Estarei aconselhando alguém e depois irei à reunião. Já aconselhou alguém em sua
vida? — Não.
— Adquirimos um genuíno respeito pela verdade quando temos de ajudar a limpar vidas construídas sobre a mentira. Pense nisso.
— Hank, tenho de pensar nos desejos dos outros. Brummel desligou ruidosamente e enxugou o suor das palmas das mãos.



Um comentário:

PROFESSORA LOURDES DUARTE disse...

Olá Cristiana! Perfeia sua postagem. Bem escrita e a medida que lemos queremos ler por inteira isto significa dizer que você escreve bem e motiva o leitor a ler. Parabéns!
Uma linda tarde. Bjuss